quarta-feira, 2 de abril de 2008
Povo Africano
Nenhum povo foi tão estilizados por preconceitos, os mais banais e os mais terríveis. Nenhum povo sofreu tanta rejeição na história das civilizações. Sua representação é tão antiga quanto é a representação simbólica na cultura universal. Desde a Grécia sua efígie está estampada nos vasos e ânforas, prova da permanência dessa representação. Nenhum povo foi assim tratado como coisa. Sem alma e sem sentimento. Odiado e desprezado. Mas a história prova que esse foi também um povo de grandes amantes. Nenhum outro povo como o negro foi, ao mesmo tempo, símbolo do bem e do mal. Mas qual foi o outro povo que, como este, soube unir as forças da natureza numa liturgia gloriosa de deuses guerreiros e deusas de puro amor; meiguice e alegria?
Quem foi escravizado e levado do Oriente ao Novo Mundo, na perplexidade diante de um mundo hostil? Quem dilacerou o corpo e a alma para resistir a tanta hostilidade? Quem criou a grande arte que mudou a estética estabelecida pelos velhos dogmas, inaugurando novos cânones na arte ocidental? Quem criou uma grande sociedade pelos quatro cantos do mundo, unindo-a no sentimento comum da grande diáspora, e como um fio de água se infiltrou lentamente, silenciosamente em culturas de outras terras, tomando para si a tarefa de nelas expandir a linguagem, a música, a alegria e o tormento, a paixão e a saudade?
Absorveu e foi absorvido pelos maltratos do mundo, e não conheço nenhum que não tenha lutado pela dignidade humana, aqui, ali, acolá. Aceitou o sincretismo como forma de permanência, como resistência de uma cultura de resignação e sabedoria. Foi barroco, foi neoclássico, foi moderno, foi aprendiz, discípulo e mestre. Mestre da vida aprendida e saboreada a cada dia, a cada hora, a cada minuto. Representou e foi representado como um dos Quatro Continentes, ao afirmar sua presença num mundo de outros conquistadores. Foi todo afeto quando representado como a Mãe Preta, como um pelicano que alimenta com a própria carne os seus e os filhos dos outros, com uma abnegação religiosa.
Aceitou o tenebroso fardo da encarnação do Mal imposto pelos que não compreendem a diferença, representado como o povo dos filhos de Cam, os que carregam consigo todas as culpas do mundo, numa contrição de humildade perante um Deus imposto, que assiste impassível aos pecados do mundo. Foi ainda contrito na representação das irmandades negras de Nossa Senhora do Rosário, na devoção cristã de todos os santos pretos, irmãos de cor e sofrimento, Santa Efigênia e seu pai Santo Elesbão, São Benedito, Santo Antônio do Cartageró.
Mas foi guerreiro e resistiu bravamente em Palmares onde reinou Zumbi, hoje herói nacional. Lutou com denodo em Guararapes, na expulsão dos holandeses, onde um outro herói, Henrique Dias, recebeu de D. Pedro II a Ordem de Cristo, pagamento da dívida que para com ele contraíra Portugal e reconhecimento da sua abnegada devoção à Coroa. E se ressurgiram os maltratos nas revoltas Malês, foi esse povo que conquistou para o Brasil a tão sonhada Independência nas batalhas da Bahia, muito embora então se elegesse o índio como símbolo da identidade nacional.
Buscou espaço para a representação de seu corpo e sua alma, sem se importar se essa alma e esse corpo incorporassem outras cores ou se de fato fossem apenas de uma só cor, negra, cobre, branca, mulata ou cafuza, africana ou americana. Aceitou toda a provação dos sentidos, mas incorporou em seus sentidos a força de sedução da sensualidade, explodindo a fronteira entre as raças, para criar, na miscigenação, uma só raça humana. Seu corpo e sua alma foram incorporados pela sociedade nacional, através de um modo de sentir a alma e afirmar o esplendor do corpo, nas muitas linguagens em que foram representados. Submetidos ao escrutínio de uma visão perversa da evolução pelo olhar da ciência. Ou exaltados como forma de sensibilidade nas artes e nas letras nacionais, pela mão de um Segall a um Bonadei, pela palavra de um Jorge de Lima a um Oswaldo de Camargo e uma Elisa Lucinda.
Esse povo inventou a grande alegria da música e da dança - dos maracatus, dos afoxés, do samba e do carnaval, assim como da liturgia sagrada dos terreiros - inventando uma negra-branca alegria, mesmo que essa luz carregue consigo todo o sentimento do mundo. De um mundo incapaz de compreender a diferença ao fazer diferença entre brancos e pretos, amarelos e vermelhos. Mas que terá de reconhecer um dia que o negro não é só cor, é sobretudo valor - e aí reside a grande conquista do corpo e da alma do negro valor da cor.
Texto: Emanoel Araujo é curador do Museu Afro Brasil.
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